Quando o box Um ano de histórias, do reverendo Emilio Garofalo, foi lançado, a Thomas Nelson criou um concurso especial para os apaixonados por ficção cristã. Os participantes deveriam deixar a criatividade fluir em histórias de qualquer gênero literário — sci-fi, romance, epistolar, mistério, policial, fantástico, etc.
Depois de ler textos criativos e analisar cada um deles, a equipe da Thomas Nelson e o autor selecionaram 3 contos de ficção cristã para serem publicados aqui no blog da editora.
Abaixo você confere — e se inspira — com as histórias vencedoras:
- Capitão a bordo
- O senhor das palavras
- Sob berro e maldições
Conheça o conto "Zumbis também morrem", de Kézia Garcia
Quando morri, ficou tudo meio embaralhado. Não me leve a mal, mas é que nós, zumbis, já nascemos mortos, então nunca imaginei a possibilidade de eu morrer outra vez. Para você ter uma ideia, quando a galera resmungava pelos escombros sobre a presença de um caçador de zumbis entre nós, eu já fui julgando que era balela. Um ser tinha que ser muito lelé da cuca para querer matar quem já estava morto.
Mas depois que algum tempo passou, eu comecei a notar a falta de alguns camaradas das redondezas. Primeiro foi o Dedinho — eu me referia a ele assim porque o seu dedo menor vivia caindo por aí, até que ele o perdeu e não o achou mais. Dedinho tinha o costume de sair para caçar minhocas toda manhã. Era a comida favorita dele. Ele cavava a terra com os dedos (deve ter perdido o pequeno em uma dessas), até conseguir capturar um punhado daquelas criaturinhas rosadas. Na época, cheguei a pensar que ele havia comido o próprio dedo achando que era uma minhoca roliça. Mas aí ele parou de aparecer, para a felicidade das rastejantes. Eu não senti muita falta, afinal, era mais comida que sobrava para todo mundo — alimentos andam escassos nos últimos tempos e o Coruja já havia tentado abocanhar até mesmo alguns de nós. Só que as coisas ficaram estranhas quando outros sumiram também.
O último foi o Come Tudo. Como você já deve estar imaginando, ele não rejeitava nada que se movia. Nem mesmo o que não se movia. Na última vez em que eu o vi, ele estava tentando roer a parede do escombro em que a gente se abrigava. Ele era o mais temido, justamente porque todo mundo achava que, a qualquer momento, ele também iria começar a querer comer todos nós. Aí ele sumiu.
Eu poderia ver isso como um motivo para ficar aliviado, mas pense bem: não era normal aquele sumiço todo. E se esse tal de caçador fosse mesmo real? E se o próximo a desaparecer fosse justamente eu? Eu podia estar morto, mas não era bobo para brincar com o perigo assim. É por isso que caí fora. E, enquanto caminhava pela floresta, imaginava se não deveria ter feito isso antes. A floresta tinha animais, não? Talvez fosse uma boa fonte de alimentos. E o melhor: sem concorrentes. Pelo menos, eu achava. Nunca havia parado para pensar se havia outros de nós por aí, longe das ruínas deixadas por nossos antepassados. Na verdade, pensar não era exatamente uma atividade muito comum, visto que o cérebro dos zumbis é tão corroído quanto a carne.
Mas eu até que tentava pensar um pouco do jeito que dava. Por exemplo, eu tinha achado meu plano de fuga genial. Um caçador iria estar exatamente no mesmo lugar em que as presas dele vivem, então abandonar os escombros era a melhor coisa que eu podia fazer. O problema era só a arteira da minha perna direita. Eu já estava começando a sentir ela meio bamba, e isso era sempre mal sinal. Porém eu não iria desistir assim tão fácil. Eu já estava acostumado com a perna dando problema e queria colocar o máximo de distância entre mim e os escombros o mais rápido possível.
O céu já estava começando a escurecer quando eu achei que já tinha chegado longe o suficiente para relaxar um pouco. Preciso te dizer: às vezes, não é fácil ser zumbi. Principalmente quando a gente precisa se mover com mais agilidade. A doença corrói as juntas e as articulações, e os membros, quando não estão caindo pelo caminho, ficam molengos demais.
Eu me joguei no chão para escorar as costas em uma árvore. O céu já estava se enchendo daqueles pontinhos brilhantes e eu ainda não tinha comido nada. Isso era bem ruim. Uma sensação esquisita dentro de mim parecia sempre me avisar que eu deveria ir atrás de alimento, e já fazia algum tempo de caminhada que ela havia aparecido. Mas ou eu descansava, ou caçava alguma comida pela floresta. E aquela perna me irritava.
Eu estava quase apagando quando um som me despertou a atenção. Olhei para todos os lados, mas eu só via folhas, matos e mais árvores. O barulho soou outra vez e ergui meu corpo do tronco para ver se assim conseguia enxergar um pouco mais longe, porém, mais uma vez, eu só consegui ver folhas, matos e árvores. Então, um amontoado de coisas começou a vir na minha cabeça: E se ir embora dos escombros tivesse sido uma má ideia? E se o caçador estivesse ali, na floresta? Pior: e se ele tivesse me seguido?!
Quando o barulho soou pela terceira vez, forcei-me a me levantar do chão o mais rápido que aquele corpo molenga de zumbi me permitia e me coloquei a correr para o mais longe possível.
Não consegui.
Eu sequer dei um passo e aquela perna traquinas decidiu que era a hora para se soltar. Ela caiu em um baque e eu fui junto. Tente imaginar a cena. Eu tentei depois (e tento até hoje) imaginar tudo aquilo sob a perspectiva de outro ser: um zumbi assustado tentando correr com uma perna solta. É claro que deu problema. E embora a minha carne já estivesse em um estado avançado de apodrecimento, senti uma dor horrorosa quando caí de costas no chão. Meu orgulho foi por água abaixo. Não que zumbis costumem ter muito orgulho. Não dá para ser orgulhoso quando se vive cambaleando por aí e perdendo partes do corpo. Mas é aquilo: quem é orgulhoso não costuma enxergar muito a si mesmo, e isso vale até para zumbis.
Mas sabe o que foi pior naquela situação toda? Quando eu descobri o motivo do barulho, eu quase quis enfiar minha cara na terra, porque era um coelho. Um coelho! Ele saiu de trás de uma moita e ainda teve a ousadia de ir cheirar o meu pé. E não era qualquer pé. Era o pé da perna inquieta!
Então decidi fazê-lo pagar pela ousadia e transformá-lo na minha comida da noite. Ou pelo menos tentei. Mas não obtive um bom resultado. Não é fácil se equilibrar em uma perna só, e o bichinho sabia ser ligeiro. Saiu saltitando como se não temesse qualquer perigo. Teve sorte, e eu voltei a escorar na árvore, sentindo aquela sensação horrível da fome. Eu até pensei em imitar o dedinho e tentar achar umas minhocas, mas eu sempre as achei meio nojentas e tinha medo de perder um dos dedos, igual ao antigo camarada. Já era duro ter uma perna solta. Foi aí que pensei que era melhor usar minha energia para tentar colocar a perna de volta no lugar. Inteiro de novo, eu poderia tentar encontrar um animal maior e mais suculento que minhocas.
Eu tentei encaixá-la de todos os jeitos, mas não deu certo. Ela parecia estar teimosa naquela noite. Deve ter sido por causa da caminhada longa. Talvez, se eu descansasse, no dia seguinte eu conseguiria voltar a colocá-la no lugar.
Não consegui, para variar.
Ela não queria colar de volta de jeito nenhum. Eu já havia virado a noite com fome, então já não tinha tanta energia assim para me empenhar naquele trabalho. Na verdade, nós, zumbis, nunca tivemos tanta energia assim. A doença corrói tudo. E com fome a coisa fica ainda pior. Então perdi a paciência. Joguei a perna do outro lado da mata.
— Maldita doença que fez a gente ficar assim, aos pedaços! — eu gritei. Na verdade, estava mais para alguns grunhidos ininteligíveis. Quer dizer… nós, zumbis, nos entendíamos, mas só mais tarde eu descobri que existe uma forma muito melhor de comunicação, a fala.
Sabe, foi há muito tempo que a tal doença apareceu. Eu não fazia ideia de como os zumbis eram antes dela, mas provavelmente era melhor do que andar por aí com a perna caindo. Talvez nós andássemos com mais firmeza, como os animais. Seria bom poder caminhar sem cambalear. Eu poderia caçar muito melhor.
Caçar… eu precisava encontrar comida com urgência, ou acabaria entrando em desespero. Mas como caçar com uma perna só? Pelo jeito, eu ia ter que me virar com minhocas mesmo. E foi o que tentei. Usei o pouco de força que eu tinha para escavar a terra ao meu lado. Mas quem disse que encontrei alguma coisa? A terra estava tão seca que eu até senti uma irritação no nariz quando a poeira levantou do chão e veio na direção do meu rosto. O jeito foi eu continuar escorado na tal árvore até algum milagre acontecer. Ou talvez eu acabasse morrendo de fome, afinal, talvez eu tivesse sido tolo aquele tempo todo por pensar que eu não podia morrer só por já ter nascido morto.
Esse pensamento ficou mais forte quando a minha barriga começou a doer. Eu nunca tinha ficado tanto tempo sem me alimentar, e a preocupação tinha tomado conta de mim, em uma competição horrorosa com a fome.
Comecei a sentir meus olhos pesarem e se forçarem a fechar e, com isso, qualquer força que ainda me restava parecia ter ido embora. Por isso que, quando vi — de forma bem embaçada, preciso salientar — um par de pés de um zumbi se aproximando, nem tive tempo de reparar, antes de apagar, que ele andava firme demais para ser mesmo um dos meus.
Quando despertei, eu estava deitado, estirado sobre uma superfície macia. Na verdade, despertar não é bem a palavra, já que eu mal conseguia abrir os olhos direito. Demorou um tempo para eu conseguir ver alguma coisa um pouco melhor, e a primeira coisa que apareceu no meu campo de visão foi a alvoroçada da perna. Ela estava em pé, escorada em na parede oposta.
Aí ele apareceu, o tal zumbi que não parecia zumbi. Ele carregava um objeto redondo nas mãos, e o objeto estava recheado de um líquido cheiroso, mas tão cheiroso que senti meu corpo faminto clamar por aquilo. O ser encostou a beirada do objeto na minha boca, e quando senti aquele cheiro tão próximo de mim, só consegui abrir a boca e deixar que o líquido escorresse para dentro dela. Era a coisa mais esplêndida que eu já havia experimentado! Mas, apesar disso, minha atenção estava tomada pela aparência do ser à minha frente.
Eu já disse que ele era um zumbi que não parecia zumbi, não disse? Pois é. Ele até tinha a forma parecida com a nossa, mas além de andar e gesticular com uma firmeza que eu nunca tinha visto, a sua pele era impecável. Nada de feridas abertas, buracos apodrecidos recheados de vermes ou pedaços pendurados prontos para cair. Ele era simplesmente perfeito.
Eu estava tão espantado que, assim que terminei de engolir o resto daquele líquido mágico, soltei alguns grunhidos perguntando ao ser quem ele era.
— Eu sou um médico.
Espantei-me mais uma vez, o que, pelo visto, já estava se tornando algo comum perto daquele ser. Os grunhidos que ele usou para se comunicar eram diferentes. Eram firmes, e eu até poderia dizer que o seu som era belo. E, apesar de ele usar sons distintos dos meus, ele me entendia e eu também era capaz de entendê-lo.
O ser curvou os cantos da boca para cima, embora eu não soubesse o que aquilo significava, e soltou aqueles grunhidos outra vez:
— Não se espante. Meus sons são diferentes porque estou falando. Posso te ensinar mais tarde, caso você queira.
Aquilo não era possível! O ser também sabia o que eu pensava? Talvez tivesse algo a ver com aquilo que ele disse que era. Como era mesmo a palavra?
Ah, sim! Médico. “Mas o que será que é um médico?”, pensei.
— É alguém que cura.
Então ele realmente sabia o que eu pensava… Era um pouco constrangedor, é claro. Mas zumbis nunca foram de ter muita vergonha mesmo. Além do mais, isso significava que eu não precisava mais usar aqueles grunhidos, o que me poupava um bom trabalho. Não é fácil usar um corpo que vive falhando e caindo aos pedaços.
O que é curar?
— Curar é deixar alguém melhor. É livrá-lo do que lhe fazia mal.
Livrar do que faz mal? Aquilo me viria bem a calhar.
Então você pode deixar a minha perna melhor? Às vezes, é bem incômodo isso de ela ficar caindo.
— Eu posso emendá-la para você, se você quiser. Mas para que ela não caia de novo, eu vou precisar fazer algo mais.
Minha perna não cair mais soava bem. Soava mais que bem: soava perfeito!
O que você precisa fazer?
O ser se aproximou mais de mim com aquela pele perfeita e comecei a me sentir envergonhado pela minha pele suja e cheia de feridas – e eu já comentei que isso de vergonha não é normal em zumbis, então, aquilo era um pouco estranho e novo para mim.
— Vou ter que refazer você.
O quêêêêêêêê? Acredite, meu pensamento foi exatamente assim, com um “ê” quase infinito. Não que eu fosse dramático ou algo assim, mas é que aquilo me soou meio esquisito. Esse papo de refazer parecia meio abobrinha.
Como assim???
— Você não sabia? Eu também sou artista.
O que é um artista?
— É alguém capaz de criar coisas extraordinárias.
Que tipos de coisas extraordinárias?
— Coisas como você.
Tá legal. Agora o papo estava realmente um pouco confuso. Eu não sabia o que a palavra “extraordinária” significava, mas pelas expressões que o ser fez ao pronunciá-las, parecia ser algo bem legal. E eu não era legal. Zumbis eram tudo, exceto legais. Ser zumbi era viver achando que você nunca teria a chance de experimentar algo diferente da morte. Eu nem deveria ter usado a palavra viver. Estava mais para locomover. Então aquilo de dizer que ele criava coisas extraordinárias como eu parecia não fazer muito sentido.
— Bem — Ele voltou a curvar a boca para cima. —, não exatamente como você está agora, é claro.
O que você quer dizer com isso?
Aquela conversa estava deixando o pouco do meu cérebro que ainda funcionava desestabilizado.
— Ora, nem sempre o mundo foi coberto por zumbis. — Eu já conhecia aquela história, mas eu ainda não entendia aonde aquele ser pretendia chegar. — Está vendo como eu consigo me mexer com firmeza? Veja como eu consigo pular e girar com destreza.
E ele pulou. Não só pulou como também girou, só para me provar que ele estava dizendo a verdade. Mas é aquilo que eu já disse: eu conhecia aquela história de que nós só tínhamos ficado desengonçados daquele jeito depois da doença. Só que eu nem imaginava que ainda pudesse existir alguém sem doença.
— Todos eram assim quando os criei. — O ser finalmente parou de pular e girar, e eu arregalei os olhos.
A parte de todos sermos daquele jeito até que eu tinha entendido, mas como assim “quando ele tinha nos criado”?
— Ora, lembre-se de que sou um artista e que artistas são capazes de criar coisas extraordinárias como você.
Médico, artista… Quantas coisas ele é? Naquele momento, os restos do meu cérebro já haviam desistido de tentar trabalhar.
O ser curvou a boca ainda mais que antes, emitindo um som esquisito.
— Muitas outras, como rei, general, pai e professor, mas você também não entenderia o significado delas.
Então… t-tá legal. Eu voltei a forçar os restos do meu cérebro a funcionarem. Afinal, ele havia dito que podia fazer a minha perna parar de cair, e isso não era pouca coisa. Você quer dizer que você criou a gente, os zumbis?
— Eu criei vocês, mas não criei zumbis.
Toda vez que eu começava a achar que estava entendendo, o ser me deixava mais confuso ainda. Aquilo estava um pouco desconcertante.
— Você já deve ter ouvido falar da doença.
Balancei a cabeça em concordância.
Mas você disse que é médico e que médico é alguém que nos deixa melhor e nos livra do que nos faz mal. Então você pode curar a gente da doença?
— Sim, posso. É isso que você quer?
Poder correr sem perder a perna? Claro que quero!
— Mas entenda que a doença é cruel. — O ser curvou os lábios, mas dessa vez para baixo. — Contamina não só o corpo, mas também os órgãos internos, incluindo o seu cérebro. Para te ajudar, terei que refazê-lo por completo.
Sim, você já comentou sobre isso de refazer.
— Posso começar o procedimento?
Olhei para a perna escorada na parede e não tive muitas dúvidas.
Sim!
O ser pegou uma corda gigante e me amarrou na superfície em que eu estava deitado. Eu não entendi bem o motivo de ele precisar fazer aquilo, mas contanto que me entregasse o resultado que havia prometido, aquilo não tinha importância.
Até que ele arrancou a minha outra perna.
Eu gritei de susto. Como assim ele havia arrancado uma parte minha?!
O ser aproximou o rosto por cima de mim e avisou:
— Vai doer.
Então eu senti uma dor horrorosa em meu lado direito, até que vi o ser levando um de meus braços para o outro lado da sala. O que ele estava fazendo comigo?! E que dor era aquela que eu nunca havia sentido?!
O que você está fazendo?! Eu gritava em pensamento ao mesmo tempo em que minha boca soltava berros. Está me matando?!
— Como você achou que eu iria te refazer? — Ele apareceu ao meu lado esquerdo. — Você tem que morrer, é claro.
Foi então que eu entendi. Eu finalmente entendi. Eu tinha feito de tudo para fugir, mas ele havia me encontrado. Aquele era o caçador de zumbis!
Eu mal acabei de constatar isso quando senti uma dor atingir meu lado esquerdo. Foi tão forte que eu apaguei.
Quando voltei a abrir os olhos, algo estava diferente. O que eu via era tão mais claro e vivo do que antes!
Eu… eu morri?
— Claro! — falou o ser. Virei meu rosto na direção do som, deparando-me como ele sentando no chão, ao meu lado. — Não há como nascer sem antes morrer.
Nascer? Eu…
— Sim. Você nasceu outra vez.
Como…?
— Ora, antes você era filho da morte. Agora que você nasceu de novo, é filho da vida. — O homem colocou uma mão no queixo e, então, ergueu tanto a boca que mostrou os dentes perfeitos e completos. — Eis aí um bom nome para você: filho.