[Concurso de contos] Sob berros e maldições, de Vitor Ericeira – TN HarperCollins Brasil

[Concurso de contos] Sob berros e maldições, de Vitor Ericeira

[Concurso de contos] Sob berros e maldições, de Vitor Ericeira

Quando o box Um ano de histórias, do reverendo Emilio Garofalo, foi lançado, a Thomas Nelson criou um concurso especial para os apaixonados por ficção cristã. Os participantes deveriam deixar a criatividade fluir em histórias de qualquer gênero literário — sci-fi, romance, epistolar, mistério, policial, fantástico, etc.

Depois de ler textos criativos e analisar cada um deles, a equipe da Thomas Nelson e o autor selecionaram 3 contos de ficção cristã para serem publicados aqui no blog da editora. 

Abaixo você confere — e se inspira — com as histórias vencedoras:

Conheça o conto "Sob berros e maldições", por Vitor Ericeiras 

A lua altiva e desimpedida auxiliava as tochas a iluminar o palco do proscênio. O vinho na segunda arquibancada, onde Anfímaco assentava-se eufórico, terminara. A corneta da orquestra, solitária, anunciava o ato final. O anão que representava o general Pompeu, de frente para a única e baixíssima parede de tijolos empilhados, detrás da qual se escondiam três outros atores agachados numa cena patética, encheu o peito de ar e bradou em voz gutural:

— Rendei-vos enquanto minha ira apenas faísca!

Um dos homens atrás da parede ergueu-se ficando da cintura em diante acima da tosca proteção.

— Jamais! Não tememos ira de homens e de todo o exército deles; tememos o Senhor, Adonai Tsvaot! — Neste momento, ao som do nome, tanto o que falava quanto os outros dois curvaram-se com rosto em terra atrás da parede e, depois, de joelhos, ergueram as mãos aos céus. Repetiam esse gesto enquanto soava a frase seguinte de Pompeu.

— Concedo-vos uma última chance… — abanou a cabeça. — Não queria chegar a esse ponto — emitiu grunhido de risada presa; algum tempo de silêncio e os homens prosseguiam na mesma postura de oração — Pois bem, vós não me deixais outra escolha. — Afastou-se do muro e falou com dois outros homens, postados lado a lado, na extremidade direita do proscênio; eles estavam trajados à semelhança dos legionários romanos, e o da esquerda segurava o estandarte com a águia.

Os soldados agacharam-se (risos da plateia) e Pompeu sussurrou-lhes uma ordem; o da direita adentrou o pórtico do cenário com pressa. O general retornou para próximo do muro, onde dois dos que se escondiam espiavam numa posição engraçada, mantendo apenas os olhos e a testa de fora, enquanto o terceiro prosseguia em oração. De repente, dos fundos, o soldado retornou conduzindo um porco preso à corda amarrada no pescoço. A multidão na arquibancada explodiu em risos e depois quase chegou à erupção quando os três atores que representavam os judeus, ao divisar o porco, derrubaram a parede e ajoelharam-se diante de Pompeu, tremendo e gritando, “Nãaaaaao, isto nãaaaao! Nos rendemos, senhor!” Durante as gargalhadas, quase engasgando, Anfímaco procurou o olhar de Jeremias entre os presentes à esquerda, mas não encontrou.

Era por volta do início da madrugada e uma brisa fresca vinda do lago suavizava o calor do verão. Descia a cidade dialogando com Licus, de Filadélfia, sonolento por causa do vinho.

— Sim, Menipo era daqui — afirmou Licus pela quarta vez, ria-se.

O pescoço e a cabeça de Anfímaco foram tomados de quentura. A peça às quais assistiram era adaptada das de Menipo, com alterações apenas na simbologia e nos povos envolvidos em guerra, isso conhecia bem. Mas não acreditava que errara de onde vinha o autor, bem dali, debaixo de seu nariz, só setenta estádios de Hipos, sua cidade natal. Como pode isso? Sabia citar de memória a naturalidade de cada poeta mediterrâneo, da Trácia à Cirene. Passou-lhe pela cabeça o dito sobre o povo de Cnossos: “O ouro do outro lado do mar sempre é mais dourado.”

Finalmente, quando chegaram no começo da descida da escadaria em Z, sendo possível divisar dali a rua colunada, resplandecente pelos archotes contra a noite, Anfímaco percebeu a oportunidade de dar o troco naquele diálogo.

— Diz, tu sabes quem construiu aquela rua? — Parou e apontou para o horizonte.

— Hum… não, não posso dizer que saiba… os construtores daqui? Heh! — respondeu Licus, ao lado. A cidade estava deserta, e eles eram os únicos na via da escadaria até onde podiam enxergavam — Vamos andando, não acho sensato pararmos aqui essa hora.

— Mas aquele não é o estilo de Gadara. Por que os construtores daqui fariam todas as ruas num certo estilo e apenas uma colunada? — Teimou, ignorando a preocupação.

— Homenagem a algum deus? Ou deusa? Hera, talvez — Licus já não prestava tanta atenção assim na conversa, observava ansioso as redondezas, a mão posta sobre a algibeira no flanco.

— Hera? Não. Ártemis é a matrona daqui. Mas de qualquer forma, aquele estilo de coluna ali não é o de Decápolis. É de Coríntio.

— Romano?

— Sim, jovem Licus — riu-se, orgulhoso, mas não do outro, — e tem a ver com a peça que vimos, não identificastes isso? — Sem esperar resposta, continuou, prazerosamente, apontando para a noite a noroeste — Na época da guerra de Pompeu contra Mitrídates do Ponto, os judeus, como sempre, também altercavam em Jerusalém. Antes de decidir em favor de Hircano, Pompeu visitou Gadara, e aquela rua — tracejou meia cunha com o dedo de noroeste a norte, de volta à rua —, foi o primeiro lugar daqui onde marchou com suas legiões. Ordenou a construção dela para homenagear a si mesmo.

Em casa, quando adentrou o peristilo, todas as lâmpadas estavam apagadas. Parou, descorando a face. Prendeu a respiração e ao mesmo tempo foi tomado por raiva dos servos. Apenas a luz prateada da lua iluminava o perímetro, refletida nas colunas e na piscina no meio da galeria. Jurou ver algumas sombras ocultando-se atrás dos arbustos de hortênsias. Correu, fugindo de ninguém, através do pátio, dos corredores e dos degrais escuros, até chegar ao quarto no segundo piso. Ali, duas lâmpadas iluminavam o amplo aposento, ainda assim, por um átimo, teve a impressão de que lhe haviam seguido as sombras lá de baixo. Acalmou-se. Cerrou a janela, apressado, o coração ainda retumbava. Acendeu uma terceira lâmpada sobre a cama e se deitou. Aos poucos pegou no sono; teve sonhos com acordes graves em crescendo e com coisas magnânimas.

— Chame o menino egípcio aqui, vá! — Despediu à serva com gesto, quando ela lhe trouxe o desjejum. Acabara de sair do banho e ainda trajava o manto leve de linho.

— Senhor, ele está preparando teu asno.

— Mande-o parar o que faz e vir aqui, agora! — repetiu, dessa vez num tom que não admitia questionamento.

Azeitava o rosto escanhoado com óleo, distraído pelo cogitar sobre a tarefa que tinha encomendado à Caleope, quando o menino entrou e postou-se calado próximo a porta. Não devia contar mais do que dois decênios; tinha a tez cor de oliva, como a gente do sul, mas não tão ao sul, como os da Etiópia. Anfímaco o observou, por um breve instante, lembrando de forma incerta a vez que o servo pareceu responder com deboche suas ordens.

— Menino, por que cheguei ontem e estava tudo escuro? — perguntou, com o olhar agora posto sobre a comida, sentando-se na cadeira diante da mesa posta.

— Senhor, o óleo para acender as lâmpadas acabou ontem, ia comprar hoje — respondeu, num tom seguro demais que incitou antipatia no outro.

— E por que não comprastes antes, se já sabia que o estoque estava no fim? — Manteve os olhos sobre a comida, cortando um pedaço de carne seca.

— Senhor…

— Quantas vezes eu já disse que não quero aquele pátio escuro?

— Mas, Senhor…

— Cala-te! Vem cá! — repreendeu; soltou a carne no prato e encarou o servo.

Quando ele se aproximou, levantou e golpeou-lhe o rosto de mão aberta; a única reação do outro foi levar os dedos ao local.

— Sai daqui! E não quero mais ver as lâmpadas daquele pátio apagadas, senão não sei o que vou fazer contigo… — gesticulou com a mão, indicando que já havia terminado, e o egípcio deixava o quarto apressado, quando o fez estancar com uma interjeição. — Ah!… vire para mim! — O menino tornou, estoicamente. — Quero a casa livre e limpa para hoje à noite. Não quero ver nem a sombra de vocês aqui depois do entardecer. Retornem ao nascer do sol. Vá!

Quando se sentou de novo para desfrutar da carne seca e das ostras, Anfímaco percebeu-se excitado. Era o poder.

Caleope era uma mulher vetusta e magricela, longos e desgrenhados cabelos brancos caíam-lhe sobre ambos os ombros; há muito perdera-se a contagem de seus anos, alguns arriscavam não menos que duas centenas. Chamavam-na Harpia de Gadara, mas apenas pelas costas, ninguém tinha juntado coragem ainda para dizer-lhe isso em viva voz. Encontrou-a na entrada do mercado, os olhos vidrados sabem-se lá onde.

— Senhor Anfímaco, devo pedir o aumento de cinco dracmas em relação ao nosso preço combinado antes — disse quando o notou, sem cumprimentos prévios, sem pudor.

— Por quê?

— O senhor tem ideia do quanto é difícil encontrar uma menina de até quinze anos que já tenha servido num templo? As de dezessete abundam, mais ainda as de dezoito… mas menos que isso…

Anfímaco se animou, a previsão das gargalhadas joviais arrepiou- lhe. Para encaixar-se perfeitamente em sua imaginação, dispor-se-ia a desembolsar tantas dracmas quanto fosse preciso.

— Tudo bem, mas não passo dos quinze por cada. Conte-me mais sobre elas.

—A mais nova tem quatorze, já serviu Artêmis aqui mesmo. A outra tem vinte, serviu em Corinto.

—Perfeito! E os quítons transparentes? — Expectou.

A Harpia de Gadara torceu o nariz, numa indicação de que aquelas exigências já irritavam, e com esse gesto, o jovem convenceu-se da adequação do apelido dado a mulher.

— Sim, elas vestirão…

— Perfeição! Envie-as ao pôr do sol. — Retirou trinta dracmas do alforje no asno e pagou.

Cheirava um vinho vindo, segundo o vendedor, da Aquitânia, quando notou, no fim da rua principal do mercado, próximo a um comerciante de pombas e louros, um indivíduo tatuado, usando bandana de seda preta posta sobre o olho esquerdo. Bebeu o conteúdo do copo, pagou seis dracmas e dois sestércios pela garrafa e caminhou rumo ao caolho.

Na tenda improvisada dele, alguns animais marinhos, talvez enguias, estavam expostos à direita, amarrados por fios ao teto; do lado de dentro, em uma mesa de madeira, dispunham-se vários tipos de peixe, os quais exalavam odor desagradável sob o mormaço da manhã; à esquerda, no chão, um largo baú de ébano, fechado.

— Pensei que os romanos tinham extirpado o teu tipo — testou Anfímaco, incerto.

O homem abriu largo sorriso.

— Tentaram, mas continuamos navegando — o grego dele era rústico demais, estrangeiro definitivamente.

— Sim, percebo, mas agora para pescar, não? — provocou, mas o outro não se permitiu envergonhar.

— Um disfarce, para que só aqueles que tem olhos, vejam.

— E o que vejo…digo, para além dessas Tilápias?

— Te mostrarei, mas… infelizmente outro visionário já comprou a última peça — fez muxoxo, transparecendo pesar e honestidade indiscutíveis.

— Hum?...

O homem se abaixou e abriu o baú com uma enorme chave de ouro, cuja utilidade era mais cênica que prática. Filho de comerciante, Anfímaco conhecia bem aquelas estratégias de valorização do produto, e congratulou-se por não ser enganado; fosse alguém menos preparado...Resolveu divertir-se, fingindo-se deslumbrado.

O pirata retirou, com escrúpulo judaico, uma concha de caracol de dentro do báu, com pelo menos dois palmos de largura e de abertura, completamente preta. O jovem segurou o objeto nas mãos, sentiu as pequenas reentrâncias ásperas e revirou-o em busca de qualquer falha naquela negridão. Pôs a abertura no ouvido: ouviu o som do vento, do mar e dos tecidos quando roçam as superfícies sólidas.

— Recebi de um parto, lá do outro lado do Eufrates, e ele disse que a encontrou numa ilha que olho humano algum jamais viu, e pé algum jamais pisou, onde as lesmas são do tamanho de cães, vivem nos vulcões e…

— Exceto os olhos e pés dele, ou não? — cortou Anfímaco a declamação, devolvendo a concha.

— O que?… Seja como for, já a vendi, para um local, pela pechincha de cinquenta dracmas e esse era o último objeto. — Abaixou-se novamente para retornar o item ao baú.

— Entendo, amigo. Bom, quem sabe da próxima vez que retornares aqui, eu chegue mais cedo — debochou, saindo debaixo da tenda, retomando as rédeas do asno.

— Não sei se ainda … — interrompeu-se o outro, os olhos postos às costas do jovem. — Ah, falando no afortunado…

Um cidadão atarracado, suarento e sorridente aproximou-se do pirata sob a tenda e retirou a algibeira do cinto. Vestia himation púrpura.

— Então… cinquenta dracmas, certo?

— Pago sessenta agora! — apressou-se Anfímaco.

Anoitecia. Anfímaco vagava pela casa vestido no manto pós-banho, com um diadema de dois chifres espiralados de carneiro posto sobre seu cabelo encaracolado e castanho; numa das mãos segurava a concha preta, na outra, uma taça do vinho também recém adquirido. Enquanto aguardava suas ninfas, buscava local apropriado para a concha. Tentou no quarto, sobre a cama, na prateleira com os papiros atenienses de Epicuro e os velos coríntios de Diógenes – muito pessoal; tentou no salão de recepção, ao lado dos tridentes etíopes e dos gládios prateados – melhor, mas inadequado. Caminhou para a galeria e assentou-se na borda da piscina; repousou a taça ao seu lado. O céu estava índigo. No meio de dois arbustos de hortênsias, a estátua de Dioniso lhe observava. Aprovador? Não, mais tarde! Segurou a concha com as duas mãos, delicado, como fosse o rosto de uma ninfeta. E mais caro que elas, pensou. Riu-se.

— Onde queres pousar? — Levou a abertura da concha ao ouvido.

Sussurros. Então, vozes. Chegaram; na porta. Deixou a concha ali, pegou a taça de vinho e foi abrir.

— Olá, Senhoritas, fiquem à vontade, por favor. — Uma delas era alta, a pele mais escura, algo entre o Egito e a Etiópia; parecia desembaraçada, como se tivesse feito aquilo milhões de vezes. A outra, a de quatorze anos, cor de cal, quase pálida, mostrou-se tímida. Ambas utilizavam Himation comum, branco. Anfímaco deu leve ósculo nos lábios delas.

Guiou-as até a galeria; já escurecera. Adentrou o peristilo e retornou trazendo duas taças, além da dele. Observava-as ávido, enquanto compartilhavam o vinho. Depois que terminaram, fixou olhar de pura luxúria no vestido delas. Entendendo a deixa, despiram-se, revelando quítons verde escuro e transparentes por baixo, cerzidos nas pernas. Ninfas! Anfímaco também se despiu do manto pós banho, revelando sua nudez. A luz prateada da lua, paulatinamente, enchia a galeria. Aquele dia era dia de boa escuridão.

— Conversem sobre mim sussurrando no ouvido uma da outra, gargalhem e depois… corram!

As jovens obedeceram. O rapaz virou-se para o busto de Dionísio, e ergueu a taça naquela direção.

— A ti! — bebeu todo o conteúdo e a atirou no chão, ao pé do mármore, ao lado das outras quatro que jaziam ali.

Então correu atrás das moças, chapinhando água quando cruzou, selvagem, a piscina. Anfímaco amou-as e pensou, novamente, que nunca seria mais feliz.

O Sol estava no ponto mais alto quando soaram as amaldiçoadas batidas na porta do quarto. Uma, duas, três vezes...

— Zeus rei, o que é? — berrou Anfímaco.

— Senhor, teu pai aguarda lá embaixo, deseja falar.

Saltou da cama, mas, tonto, prostrou-se poucos centímetros adiante. A boca, seca; a cabeça, dolorida. Lavou o rosto profusamente, passou perfume e desceu.

— No muito vinho abunda a tolice — recitou o pai, sacudindo a cabeça, quando o avistou.

Anfímaco sentiu aquele comentário como se lhe tivessem socado o rosto. Desejou morrer. O Velho assentava-se, recostado sobre o espaldar alto de uma cadeira; o pé esquerdo, enfaixado, repousava no acolchoado de almofadas em outro assento.

— Graça, pai.

— Graça? Já começou a tarde, Anfímaco! É essa a vida que tu vais viver? — Contorcia o rosto com desprezo.

— Que vida, pai, que estou vivendo…? — A cabeça doía e não estava com paciência para aquelas conversas. — Apenas acordei mais…

— Não minta para mim, rapaz! — interrompeu o pai, severamente. — Queres torrar meu dinheiro todinho em putas, bebida e espetáculos? — Cravou-lhe o dedo em riste. — Eu ou tu teremos de morrer antes que eu deixe isso acontecer… Está ouvindo?

— Quem disse que eu estou…

— Não mintas! Nem os servos aguentam as nojeiras que fazes aqui!

— Nojeiras?! — Esquentou-lhe a cabeça, mas conseguiu se controlar, ajudado pelo latejar na têmpora. Esfregou o local. Não valia a pena; o pai era um velho ranzinza e desprezível. Teria sido o egípcio que lhe contou? Ressentido? — Olha, pai — disse, apontando para uma cesta de palha na pequena mesa da sala —, levei os papiros para os escribas de Próxenos ontem, como dissestes…

— Tu és preguiçoso, mentiroso e fútil como tua mãe — descarregou o velho, sem se apaziguar.

— Talvez ela tenha te abandonado porque o senhor é quem é fútil, mesquinho e desagradável — retrucou Anfímaco, quase automaticamente. Cruzou o olhar com o pai; nenhuma dessas palavras eram inéditas.

— É…— iniciava o velho, mas, de repente, interrompeu-se, cerrou os olhos e gemeu.

— Qual o problema com teu pé? — perguntou Anfímaco, de braços cruzados, sem mover-se do lugar.

— Não sei… não sei… argh! — Petirou o pano e revelou o pé vermelho e inchado, principalmente na região do dedão. — O médico disse que deve ser relacionado ao clima e a comida… talvez gota. Ele disse que pode se espalhar para outras partes do corpo.

Repentinamente, Anfímaco ficou preocupado. Lembrou de Tríopas, um homem de Hipos cujo pai tinha ficado paralisado do pescoço para baixo depois de um movimento errado numa sessão de ginástica no estádio. Tríopas tinha que dar-lhe comida, água na boca, banho e até levá-lo ao banheiro… nunca saíra da Judeia…

— Pai, mas ele disse que é grave? Não pode, o Senhor não fica doente! — aproximou-se, ansioso, agachando-se ao lado da cadeira onde estava posto o pé.

— O que? — Surpreendeu-se o pai, — Não sei... estou passando sebo de carneiro, parece está melhorando… menos inchado…

— Mas por que que o senhor não manda chamar outros médicos para pedir a opinião deles também? Pode ser que seja outra coisa…

— Vejo isso depois — declarou o fim do assunto. — De qualquer forma, vim aqui só por isso. Como tu já viste que estou impedido, teu irmão está cuidando de tudo em Laodiceia… Quanto a ti, tu também deves fazer algo. Quero que leves setenta rolos de papiro à Abilene na terceira semana deste mês… É para o templo de Zeus Olímpico — disse, encarando o dedão do próprio pé. — Lembra-te de que é festa da colheita, no dia seguinte, tu terás de participar das refeições comunitárias…

Ia recusar-se, mas resolveu acatar a ordem. Não queria ofender nenhum deus por acaso, vai que lhe amaldiçoassem exatamente com aquilo que temia: a desgraça de Tríopas.

A viagem inteira fora cansativa e desgastante. Abilene distava meio-dia de viagem de Gadara, o caminho pedregoso e arriscado; além de três servos, entre eles o egípcio, acompanharam-lhe dois mercenários contratados.

A cidade era bela e ornamentada, o templo de Zeus Olímpico, esplendoroso; entretanto, certo miasma de fezes, de procedência oculta, intensificado pelo calor exagerado, empesteava o ar e prejudicava qualquer apreciação.

Quando chegou ali, a primeira coisa que fez foi executar seus intentos, amadurecidos durante as duas últimas semanas, para com o menino egípcio: vendeu-lhe bem barato a um lanista da Espanha. Depois disso, finalizou as transações do pai, usou coroas de louro, comeu carne dura e insossa de boi e, ao observar a multidão andrajosa, sob o sol escaldante, associando a visão ao cheiro de merda, detestou-a. Pelo menos havia vinho para ajudar tudo a descer, a carne e o momento.

O sol já se punha atrás de sua caravana, as nádegas doloridas e dormentes pelo movimento repetitivo do onagro, quando avistou Gadara ao longe, entre dois outeiros. Nos campos de relva rasteira, a caminho da cidade, vários pastores, acompanhados de ovelhas, carneiros e porcos, iniciavam a perambulação noturna tão comum no verão. Sonolento, Anfímaco os cumprimentava. De repente, os porcos, dispersando-se, passaram a guinchar como fazem quando escolhidos para o abate, ziguezagueando em frenesi a comitiva, sob os berros e maldições dos donos.

Em casa, ao passar pela galeria, percebeu que o busto de Dioniso fora coberto e que as taças haviam sido varridas do chão. Respirou fundo. A vida é sofrimento!

Relatou o sucesso da viagem e em recompensa recebeu a péssima notícia de que o velho, agora com o pé menos inchado, passaria mais dois meses ali em Gadara com ele, para terminar a recuperação. Anfímaco deu de ombros, como não se importasse muito. Estava exausto, não demorou muito, subiu para o aposento. Guardou os braceletes dentro do baú sob a cama, onde havia ocultado a concha. Lavou-se, riu com algumas linhas de Diógenes, e quando já se aquecia sob o cobertor, lembrou do egípcio, do seu desespero ao ser vendido; sorriu, vingado, e adormeceu.

Dormiu sono de sonhos inquietantes. Sonhou que estava na cama quando o menino egípcio bateu na porta do quarto para relatar problema com insetos no andar debaixo. Quase perguntou: não já havia me livrado de ti? Desceu.

Locustas do tamanho de punhais infestavam a sala e a galeria. Vários servos pisavam-nas, e as mulheres, gritando, derramavam óleo e acendiam fogo.

— O que vocês estão fazendo? — bradou Anfímaco, aturdido — vão queimar os móveis e as plantas. Só batam nelas!

— Não morrem, senhor, não morrem — chorava escandalosamente uma serva.

Anfímaco observou que os insetos nos quais o fogo pegava, continuavam se movimentando, agora transformados em bola de chamas, como se nada lhes estivesse acontecendo. Zumbiam terrivelmente, como mil serrotes.

Acordou preguento de suor; a luz da lâmpada sobre a cama tinha apagado. A janela estava aberta, e ainda assim fazia calor. Sentia o corpo febril e dolorido. Teria enfermado na viagem? Deitou-se, dessa vez sem o cobertor, e fixou o olhar no teto em busca de qualquer bicho. Com o tempo, se distraiu com a expectativa pelo domador de leões que visitaria Gadara no fim do verão.

Não decorrido muito, passou a ouvir sons distantes de altercação. Parecia que alguns homens haviam alcançado o auge da briga, e ainda que nenhuma palavra fosse compreensível, imaginava, pelo tom, que a qualquer instante alguém sairia ferido ou morto. Beberrões. Entretanto, os sons foram ficando mais próximos, até soar como vissem do andar debaixo. Eram ásperas palavras em língua bárbara. O coração de Anfímaco apressou-se. Com quem o pai brigava a essa hora? Desceu.

Lá embaixo, visão e audição opuseram-se num paradoxo. Os aposentos estavam desertos, as luzes apagadas, mas ele ouvia uma briga tão alta, como se na galeria ou na porta da rua. Mas lá, nada também. Teve medo. Correu de novo para o quarto. De pé na balaustrada da janela, constatou, para seu espanto, a rua deserta. Entrementes, as vozes no ouvido intensificaram o tom até causar incômodo ao tímpano do rapaz. Distinguia pelo menos seis entonações diferentes. Tapou as orelhas com as mãos, mas isso tornava o barulho ainda mais alto, ecoante. O que é isso? Desesperou-se para o quarto onde dormia o pai.

— Pai, pai, pai… — clamava, ouvindo a própria voz baixa em contraste à briga — tem alguma coisa errada comigo… tem alguma coisa…

O pai claudicou na direção dele, movia os lábios, assustado. Sentia a cabeça como que rachando, e, jogado ao chão, retorcia-se, para a perplexidade dos servos que despertavam sobressaltados e reuniam-se no aposento.

O rapaz entrou em pânico, como um animal acuado e, por puro instinto, ergueu-se e disparou a correr sem rumo pela casa, como correm aqueles que pegam fogo. Saiu pela rua, apenas com roupa debaixo.

As vielas estavam desertas, escuras. Correu, aleatoriamente, no rumo nordeste da cidade, na direção do outeiro que chamavam Crátilo. Não sentiu frio, nem dores nos pés por quicar descalço sobre paralelepípedos e depois sobre pedritas finas, nem o ardor das urtigas bravas que lhe roçavam as pernas quando chegou à subida da ribanceira. Ali pararam as vozes e a dor, de supetão; ali ele parou.

Desse mais um passo, Anfímaco com certeza morreria com a queda. Entorpecido, mirava a escuridão. O vento fresco beijou-lhe o rosto; mais além estava o lago: seria possível observá-lo dali à luz da manhã. Conscientizando-se de onde parara, recuou dois passos, com mais receio de que as vozes voltassem, do que de cair. Observou ao redor e percebeu-se dentro do mato, sozinho e no escuro. Correu de novo, dessa vez na direção contrária.

Consolaram-lhe com vinho. Uma serva derramava água gelada sobre as pernas avermelhadas dele. Contou ao pai e aos outros curiosos, reunidos na sala de visitas (em outra hora talvez lhe incomodasse aquilo, mas agora apreciava a companhia de muita gente), o que tinha passado. Confirmaram que não haviam ouvido vozes, muito menos brigas. Enquanto narrava, Anfímaco sentia-se aliviado e, ao mesmo tempo, com medo; notou que, com exceção do pai, os outros presentes também estavam ficando assustados. Presumindo certa liberdade naquele momento inaudito, a serva mais velha da casa diagnosticou:

— Isso é espírito mau… — arranhou a voz antiga e miúda — pode ser espírito de familiar que não foi enterrado direito…eles provocam sonhos e alucinações ruins.

Neste instante, o pai decidiu que já passara da hora dos criados se recolherem.

Observaram-se, ele e o progenitor, à luz das lâmpadas. Após longo silêncio, brotou um diálogo sobre negócios, sobre os jogos olímpicos, sobre o imperador e sobre os impostos exorbitantes em Cesareia. Anfímaco esquecera a última vez que ele e aquele homem haviam conversado por mais de dez minutos.

Após breve cochilo, o rapaz despertou sobressaltado por um grito estridente.

— O QUE É ANFÍMACO!

O pai ainda dormia no sofá à frente. Lá fora, os primeiros raios de sol assomavam. Os servos ainda estavam recolhidos. Sentia-se cansado. Não obstante, assaltou-lhe certa inquietude por esse novo imprevisto. Começou a perambular silenciosamente pela casa, cogitando mil coisas ao mesmo tempo.

Por volta do meio da tarde, receberam a visita do médico vindo de Hipos. Ele detectou febre, e essa seria a causa provável dos delírios. Anfímaco passou o resto do dia deitado em seu quarto, num sono intermitente, fazendo compressas frias na testa.

— ANFÍMACO! — gritou-lhe de novo a voz estridente.

Caiu da cama no susto. O grito, igual ao da manhã, soava como se alguém tivesse encostado o rosto no dele e então bradado. Mas encontrava-se só no amplo aposento. Era o início da noite. Antes que pudesse organizar as ideias, tornou a ouvir os sons de briga, primeiro distantes, mas a cada momento mais próximos. O choro explodiu em seu peito, e ainda sentado no chão, esfregava os olhos.

Surpreso, percebeu que o som do seu choro diminuía o volume das vozes iradas na mente. Acalmando-se, descobriu que gritos produziam o mesmo efeito. Então passou a gritar, “AHH!” …. “AHH!”. A cada brado as vozes reduziam um pouco o volume, só para depois de alguns minutos de silêncio voltarem a se elevar, e então Anfímaco tinha que fazer, “AHH!” …. “AHH!”, de novo, e de novo. Com o tempo notaria relação quase matemática, quantos mais “AHs”, mais tempo as altercações em sua mente demoravam a retornar.

Aqueles primeiros gritos, naquele dia, atraiam os olhares, crescentemente consternados, do pai e dos servos, ao quarto, que encontravam o jovem dando círculos, absorto no seu gralhar, recebendo dele nada mais que furioso aceno de mão para que o deixassem a sós.

Após criar algum saldo de gritos em relação as vozes, exauriu-se, então, recostou-se na cama e, apesar de angustiado, logo pegou no sono.

— ANFÍMACO!

Acordou e, sem forças, chorou baixinho, enquanto a confusão retomava o fôlego. Enlaçou-se nesse ciclo tormentoso de choro, grito e cansaço a noite inteira. Dispensava toda ajuda e companhia, não porque não precisasse, é que a cena patética da noite anterior, humilhado diante dos servos e do velho, vinha-lhe a memória e o deixavam num estado de teimosia e ira implacáveis, que igualavam sua necessidade e como que a subtraiam.

Ao refletir sobre essas coisas, lembrou-se de alguns homens e mulheres lunáticos que havia visto em Hipos e em Atenas. Imaginou o que diria de si mesmo caso se visse gritando e andando em círculos: louco! Será que os gestos de todas aquelas pessoas possuíam algum sentido lógico interno e particular, os quais vistos a partir de fora não faziam qualquer sentido? Era isso que ele estava se tornando?

Na janela fez preces ao Senhor dos Relâmpagos; repetiu, recuperando do fundo das memórias infantis, vinte e cinco dos quarenta e oito epítetos do deus, e prometeu sacrifícios assim que se recuperasse.

Na manhã seguinte, zonzo e cansado, recebeu a visita do médico de novo. Desta vez ele levantou a hipótese de afetação por humores amarelos. Recomendou, além de compressas, sol e presença comunitária; entregou-lhe também algumas folhas de valeriana para um chá que o ajudaria dormir.

Após o almoço, fingindo desinteresse, questionou o pai:

— Algum parente nosso morreu no mar?

— O quê?

— Algum parente nosso morreu no mar? Ou em alguma guerra? Tens notícias da minha mãe?

— Por que estás perguntando isso, Anfímaco? Não vais dizer que estás dando ouvidos a essa velha aqui de casa…

Nesta noite, não obstante haver tomado o chá (bem mais do que o recomendado), atingiu o auge de seu desespero. Pois até ali, no fundo, no fundo, pretendia tudo aquilo como algo passageiro, talvez leve infecção por causa da viagem àquela cidade fétida, talvez alguma planta alucinógena derramada por acaso durante o processo de fermentação dos vinhos estrangeiros que comprava.

Mas após sono breve, recostado na cadeira que pusera perto da janela do quarto, despertou com aquele grito. Ao contrário das outras vezes, encarou com estoicismo; porém, decorridos menos de dois quartos de hora, enquanto observava a lua e lembrava com saudade dos tempos em que tinha saúde, manifestou-se um novo e terrível sintoma.

Aos poucos, sentia coceira em diferentes partes do corpo, de início, leves; depois, intensificando, principalmente pelo próprio coçar. Nem as unhas, nem o bronze do espelho, nem a ponta da adaga aplacava; espalhava-se como que por dentro da carne, como se brincassem passando espanador nas estranhas e nas veias dele. Sangrava nos braços onde tentara ir mais fundo com a lâmina. Aos poucos, conforme percebia que a coceira não ia embora, foi sendo tomado pelo pânico, e passou a retirar e até rasgar as vestes, pois os tecidos contra a pele pareciam intensificar o tormento.

Saltou pela janela e correu pela rua, esfregando os lados da cabeça, coberto por nada mais que um perizoma, o qual, eventualmente, também retirou em algum momento da corrida desesperada. Nu, ao se assustar com as ruas não completamente desertas, com o resquício de dignidade sobrevivente aquele tormento, desviou para os campos ao sudeste, na direção de Capitolias. Ao lidar com a mais nova miséria, esquecia-se de gritar e nisso as vozes recrudesciam. Lágrimas salgavam seus lábios.

Antes do amanhecer, um servo o encontrou, sujo de terra e capim, com feridas nos pés e arranhões na barriga. Cobriu-lhe e conduziu de volta para casa.

O pai queria zarpar para Atenas em busca de ajuda mais especializada, mas na concepção de Anfímaco isso significava o mesmo que aceitar possuir uma doença duradoura. Insistiu que a recomendação da serva de levá-lo ao mago na vila de Gergesa não podia machucar. Depois de enérgica discussão, partiram ainda a tarde, discretos, ele, o pai, dois onagros, a velha e um mercenário.

Torturado no trajeto, suportou por algum tempo, visto que a esperança de cura jazia no horizonte; mas, após a primeira hora, quando nem a esperança bastou, e os calmantes não mais surtiam efeito, deu ordem para que o guarda-costas o nocauteasse. Apesar das opiniões veementes em contrário, os berros animalescos de Anfímaco venceram e, com o punho duro e largo, o homem o desmaiou.

Gergesa era uma pequena vila de pastores e pescadores as beiradas do lago, ou, como os judeus preferiam chamar, mar da Galileia. Estendia-se à leste sobre uma escarpa de elevação mediana que terminava num precipício em frente ao lago; nas outras direções beirava campos, desertos, outeiros e montes infindos. De Hipos era possível ver algumas seções da vila e a cidade alta de Afeca, onde vendedores negociavam a maior parte do que a povoação produzia. Anfímaco passara pelo povoado com o pai certa vez, num tempo há muito ido, quando foram acompanhar o irmão até o embarque em Cesaréia. A maioria das casas da vila era mistura de pedras lavradas e palha. O ambiente exalava odor de couro, peixe e mijo. Na hora que chegaram, a noite já ia avançada e, com exceção da movimentação de alguns pescadores noturnos, o dia de trabalho recebia a recompensa do descanso.

A serva indicou uma casa tanto quanto afastada das outras, quase na entrada do desfiladeiro à noroeste. A construção tinha símbolos indecifráveis desenhados nas pedras quadradas; à direita, dois jumentos repousavam amarrados.

A velha bateu na porta e um ancião de espessas barbas negras atendeu, trajando apenas roupa de baixo. Apresentou-se como Ofar. Após o pai mostrar-lhe a algibeira com cem áureos, perdeu toda resistência quanto a hora avançada.

Exigiu que apenas Anfímaco entrasse. O rapaz estava tonto e com severa dor de cabeça. A residência tinha cômodo único e chão de terra batida. Num dos cantos, uma pequena fogueira; no outro, uma estante de madeira abarrotada de cordões, papiros velhos, pergaminhos e utensílios de pedra. Quase no meio do espaço, havia uma rocha espessa e comprida, com abertura longa escavada no centro.

— Tire toda a roupa — grasnou o velho, sem olhar, buscando algo da estante.

Não questionou, não discutiu.

— Deite-se ali dentro — ordenou ao apontar para a rocha, já vestido de túnica e laçando os braços com o que pareciam filactérios.

Aproximou-se de Anfímaco, que se deitara em posição fetal na rocha fria. No pescoço do homem, enroscavam-se vários cordões com pingentes distintos. Ele pôs as mãos calosas no peito do jovem. Sisudo, mas profissional, sussurrou, mais para si mesmo: “Demônios, demônios…”. Afastou-se e voltou segurando uma bacia de pedra da qual derramou água gelada na banheira até submergir por completo o braço esquerdo do rapaz, apoiado no fundo da fenda. Saiu da choupana e podia-se ouvir, do lado de fora, as perguntas preocupadas do pai e da serva, mas nenhuma resposta. Retornou com um balde fétido e derramou o conteúdo sobre Anfímaco. Peixes, muitos pescados de tamanho médio encheram a água, alguns ainda estrebuchavam. Ofar levantou a cabeça, cerrou os olhos e começou a cantar sílabas longas em hebraico e depois a invocar nomes específicos.

O rapaz apagou.

Quando tornou a despertar, era o fim de uma tarde. No horizonte, rumo das areias, o sol resplandecia em formato de meia laranja. Anfímaco estava em pé num lugar arenoso e desértico. Perto dele, várias pedras deitadas de largura mediana espalhavam-se numa disposição mais ou menos regular, frente a trechos de terra revolvidos. Um cemitério. Ele estava nu, como quando entrou na banheira, o olho inchado, os pés feridos, rouco, e tão, tão cansado. Caiu de joelhos e rastejou até uma das pedras, onde apoiou a cabeça. No solo morno, Anfímaco dormiu profundamente.

Acordou em frente ao lago, preso na parede do lado de fora de uma casa, laçado no pescoço por uma corda; as mãos acorrentadas nas costas. Tentou correr, mas caiu para trás, sem fôlego. Debatia-se no chão, desesperado, as tripas começaram a coçar; amplas manchas arroxeavam o tronco e as pernas dele.

— Paaaai, paaaaai, por favor…. Paai!

— O louquinho acordou — soou uma voz masculina

Reuniram-se três homens frente a ele, além de uma mulher. Falavam grego natural.

— Agora nós vamos furar teu olho como tu fez com o Ofar — disse o homem que segurava uma vara na mão.

— Nãoo… por favor… me soltem… pai, paaaai! Meu Zeus, tá coçando, tá coçando demais, demais… — Debatia-se.

Gargalharam.

— Não adianta chamar pai, menino rico. — Futucou-o à distância com a vara.

Bradou sem som; com força adventícia, quebrou as correntes e puxou o pescoço, soltando a corda da parede. Fugiu para o deserto, sob berros e maldições.

Quando viu que ninguém seguira, retirou a corda do pescoço, ofegante, e saiu a procura de uma pedra pontuda. Quando a encontrou, medindo dois palmos, esfolou a pele dos braços e do flanco, ao tentar aplacar a coceira. Sentado, cavando o corpo, sentiu fome ao ponto do desmaio, o que o fez mastigar cru um lagarto que errava ali perto. As pequenas pedras, misturadas com areia e com a carne do animal, feriram-lhe a gengiva e quebraram um dos dentes. Depois de comer, num choro sussurrante, rastejou alguns poucos metros e caiu exaurido sob uma figueira retorcida. Numa manhã de sol escaldante, tornou a acordar com a bicada de alguns pássaros que o tomavam por cadáver.

Anfímaco perdeu toda noção de tempo: despertava em momentos diferentes do dia, sempre exausto, transportado a esmo – às vezes à beira do lago, às vezes a um esgueirar dentro de celeiros e currais, às vezes ao deserto, comumente ao cemitério, onde melhor cochilava. Fedia a fezes e à carniça. Os episódios mais duradouros de consciência eram gastos com gritos, escavações na pele e alimentos vivos. Assustava e era assustado por vultos irados dos quais, repentinamente, se apercebia, distinguindo aqui e acolá um rosto.

Despertou certa noite, depois de um sonho breve. Recostava-se num túmulo escavado; ali do lado, um cadáver podre; numa fenda de rocha, empoleirada e silenciosa, uma coruja o estudava, projetando imensa sombra prateada na areia, sobre ele. Anfímaco chorou amargamente pelo sonho breve esquecido, por lembranças de sentimentos de outra vida: as lágrimas escorreram por sua barba espessa e desgrenhada antes se precipitarem na perna em carne viva.

Numa madrugada, enquanto se deitava sobre as pequenas pedras pulverizadas e pontudas que margeavam o lago, numa mistura de torpor e loucura febril, uma ventania soprou do continente, lançando quentura, areia e capim no seu rosto. Indiferente, virou para o outro lado, o das águas, aproveitando para se esfregar contra o chão. Dormiu conduzido pelo quebrar distante e furioso das ondas na escuridão infinita.

 

***

 

“Chegaram então ao outro lado do mar, à terra dos gerasenos. Assim que Jesus saiu do barco, um homem possesso de um espírito impuro veio dos sepulcros ao seu encontro. Esse homem morava nos sepulcros; nem mesmo com correntes alguém era capaz de prendê-lo, porque ele havia sido preso muitas vezes com algemas e correntes, mas as correntes eram quebradas por ele, e as algemas, despedaçadas. Ninguém tinha força para dominá-lo. Noite e dia, ele andava sempre gritando e se ferindo com pedras pelos sepulcros e pelos montes. Ao ver Jesus de longe, correu e prostrou-se diante dele, clamando em alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te por Deus que não me atormentes. Pois Jesus lhe dissera: Sai desse homem, espírito impuro. E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E ele respondeu: Meu nome é Legião, porque somos muitos. E rogava-lhe muito que não os enviasse para fora da região. Uma grande manada de porcos pastava perto dali num monte. E os demônios rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para aqueles porcos, para que entremos neles. E ele assim lhes permitiu. Então os espíritos impuros saíram do homem e entraram nos porcos. A manada, que era de uns dois mil animais, precipitou-se pelo despenhadeiro no mar, onde todos se afogaram. Os que cuidavam dos porcos fugiram e anunciaram essas coisas na cidade e nos campos. E muitos foram ver o que havia acontecido. Quando se aproximaram de Jesus e viram o endemoninhado, o que fora possuído pela legião, sentado, vestido e em perfeito juízo, ficaram com medo.

E os que tinham visto aquilo contaram-lhes o que havia acontecido ao endemoninhado e aos porcos. Então eles começaram a rogar a Jesus que se retirasse do seu território. Quando Jesus entrou no barco, o homem que fora endemoninhado pediu-lhe que lhe permitisse acompanhá-lo. Jesus, porém, não lhe deu permissão, mas disse: Vai para casa, para a tua família, e anuncia-lhes quanto o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti. Ele se retirou e começou a divulgar em Decápolis tudo quanto Jesus lhe havia feito; e todos se admiravam.”

Evangelho de Marcos

 


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